Crônica #132 | Relacionamento tóxico.
- Redação neonews
- 29 de jul.
- 9 min de leitura
Atualizado: 21 de ago.
Conflitos em batalha.

O que você encontrará nesta crônica:
"Quantas vezes insistimos em vínculos que nos sufocam, presos ao medo, temendo romper e enfrentar a culpa? Romper com ciclos tóxicos exige coragem, mas é, antes de tudo, um gesto de amor-próprio. Muitas vezes, o cuidado mais urgente é olhar para dentro, enfrentar a autocobrança e o julgamento que nos paralisam. Libertar-se começa no instante em que se reconhece o que dói e se escolhe a vida. Você está pronto para romper com o que não serve mais e construir novos caminhos e relações saudáveis? Está pronto para essa escolha?"

I. Dardos de veneno: vínculos que sufocam.
Numa sala da associação que eu presidia, a pauta da reunião era discutir o uso de inseticidas para o controle de insetos peçonhentos. Um tema técnico, prático, com início, meio e fim, ou assim pensávamos. O debate se acalorou, e a conclusão unânime não veio. Foi decidido, então, consultar especialistas da área.
Enquanto todos se dispersavam, permaneci ali, organizando papéis e tentando redigir a ata. Era o momento ideal para organizar também os pensamentos.
Foi quando percebi que alguém ainda permanecia na sala. Era Carlinhos, um jovem educado e sempre discreto. Ofereceu ajuda com um sorriso tímido, e agradeci. Ele parecia ter algo a dizer, e de fato tinha.
- “Sabe... hoje falaram de veneno... e isso me tocou” disse, enquanto ajudava na arrumação da sala.
- “Fiquei pensando: que produto a gente usaria para acabar com um relacionamento tóxico?...”
Parei. Fechei meu notebook e olhei para ele com atenção.
Aquela pergunta tinha mais peso do que a reunião inteira. A frase não era técnica, era humana. E humana demais para ser ignorada.
- “Sente-se aqui. Muito interessante sua colocação. Vamos conversar. Que história é essa, Carlinhos? Conte-me o que está te atravessando...”
Há perguntas que nascem da dor, não da simples curiosidade.
Ele começou devagar, como quem desenrolava um novelo de silêncios antigos. Falou da família, da gratidão, do amor que sentia pelos pais, e também das dores e mágoas que os envolviam. Contou das palavras amargas que ouvia entre eles, dos julgamentos do passado, do veneno que escorria, sutil, nas entrelinhas das cobranças familiares.
Seu pai sempre tentava apagar os incêndios emocionais sem nunca se queimar, pelo menos por fora, aparentemente. Era quem mais ajudava a filha mais nova, a irmã de Carlinhos. Foram muitos os momentos difíceis: gravidez precoce, casamento conturbado, vícios de consumo e dívidas. Ela vivia sempre envolta em caminhos tumultuados e redemoinhos de confusões. Reinava em conflitos, internos e externos. E a toxidade, transbordando dela, acabou por atingir todos da família, pois os ciclos se repetiam e pareciam nunca ter fim.
Carlinhos lamentava como, mesmo com tanto sofrimento, ninguém conseguia dar um basta. Todos haviam absorvido pactos silenciosos que, aos poucos, foram adoecendo os laços familiares. Pois, em vez de gratidão, sua irmã devolvia com acusações, desprezo e exigências, como se nunca tivessem feito o suficiente. Ela pedia, e seus pais atendiam. Ela falhava, e eles a resgatavam. Ela acusava, e eles se sentiam culpados.
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Il. Toxicidade: múltiplas raízes, mesmo veneno.
Alguns ferem porque estão feridos. Outros, porque nunca aprenderam a amar. Mas também existem aqueles que ferem por escolha, com frieza, por prazer ou por necessidade de controle. São pessoas que manipulam de forma consciente e calculada para benefício próprio. São tóxicas por egoísmo ou narcisismo, e não carregam culpa nem se questionam. Não vivem em guerra interna, apenas carregam a frieza de quem se coloca acima do outro.
A verdade é que a toxidade sempre começa dentro de alguém. Entretanto, nem todos se dão conta disso. Alguns sofrem porque não sabem amar; outros nem se importam com os danos que causam.
Carlinhos parecia ter se dado conta de que, mais do que uma simples testemunha, ele era parte daquele enredo. Estava emocionalmente enredado, intoxicado por dores que nem sempre eram suas, preso a uma trama infindável de cobranças emocionais e financeiras que o sufocavam.
Nos últimos tempos, tudo havia se tornado muito pesado para sua alma. Havia se instalado um ciclo de dependência emocional: pedia-se mais do que se merecia, dava-se mais do que se podia. E havia, por trás disso, a culpa por não conseguir consertar tudo. Às vezes, o amor vira cativeiro, e o afeto se transforma em correntes.
O pior cárcere é aquele que se disfarça de laço afetivo.
Relacionamentos tóxicos nem sempre têm traições visíveis, nem gritos ou agressões diretas. Muitas vezes, a toxicidade se manifesta na manipulação sutil, nas cobranças afetivas camufladas de cuidado, em uma dependência emocional que drena a alma. E ferem sem deixar marca aparente.
São relações que criam um campo magnético de aprisionamento: o outro não muda, e a pessoa sente que não pode partir. Porque, se partir, sente culpa. Porque, se impuser limites, parece desumano.
E então tudo pode se manter na sutileza.
Uma das partes precisa diminuir a outra para se sentir bem. A manipulação é tão delicada que, muitas vezes, passa despercebida. Vai se criando narrativas, culpando, exigindo mais do que o outro pode dar... E o outro, por amor, se submete, se desgasta, se anula. Muitas vezes, completamente sugado, entra em exaustão, sem saber exatamente o porquê de seu cansaço.
Quantas relações se sustentam pelo medo de romper? Pelo apego à ideia de “família”?Pelo peso do “é assim mesmo com todo mundo...”?
- “A cada dia mais, sinto que minha família inteira está intoxicada... num limite absurdo. E mesmo assim, seguimos bebendo esse veneno familiar em doses silenciosas, em cálices de culpa, de silêncios engolidos, de palavras duras demais para o coração.”, assim ele se expressou.
Carlinhos sentia mais do que pensava. E sentia que precisava romper. Não necessariamente com a irmã, mas romper com o papel de fiador emocional da dor alheia. Queria devolver a ela a responsabilidade por si mesma, por suas escolhas, por suas dores não curadas.
Ficamos em silêncio por alguns instantes; aquelas palavras ficaram reverberando fundo.
Quantas relações vemos por aí se tornando doentias, sufocantes, e nem muito pelas faltas, mas pelos excessos: excesso de controle, de cobrança, de desrespeito, de chantagens emocionais. Onde o vínculo vira campo minado, o afeto passa a depender de desempenho, e o amor, erroneamente confundido com obrigação, vira moeda de troca.
Carlinhos, com o olhar triste, disse:
– “Meus pais não se defendem. Acho que aguentam tudo por amarem demais a filha.”
Esse tipo de dor não era só dele; na verdade, é a realidade de muitos.
Relacionamentos tóxicos acontecem em qualquer espaço, entre pais e filhos, casais, amigos. E quase sempre existe uma alma silenciosa carregando o peso de um vínculo adoecido, tentando manter uma ponte que já desabou faz tempo. Muitas vezes, a pessoa mais amorosa é também a que mais sofre, porque ela demora mais a perceber que amor que machuca não é amor. É apego, é medo, é culpa mal disfarçada.
Quantos corações adoecem por insistirem onde o afeto já expirou?
Ainda acontece desses relacionamentos serem sustentados e herdados por padrões antigos. Aqueles onde famílias confundem amor com sacrifício e não se permitem estabelecer fronteiras por medo de parecerem egoístas. Vivem, assim, o drama do “eu me anulo por você”, esperando em troca uma gratidão que nunca chega.
Mas amar também é saber dizer não.
Tudo na vida carrega um ponto de limite.
Todo amor precisa, também, de limites.
Porque amor sem limite vira prisão.
E ninguém salva quem não quer ser salvo.

lII. Meu próprio inimigo
Carlinhos assentiu, como quem ouvia algo que já sabia, mas precisava escutar em voz alta. Respirei fundo. Tudo o que ele me dizia era muito familiar para ser exposto. E então, lhe perguntei com delicadeza:
- “Você já pensou que pode haver algo ainda mais tóxico do que um relacionamento com o outro?”
- “Será que existe algo pior do que isso?” Ele me olhou confuso, com os olhos levemente arregalados. - “Sim, Carlinhos. Muitas vezes, o relacionamento mais tóxico que temos é conosco mesmo.”
- “Mas como isso é possível? Se sou eu comigo, como posso me envenenar?”
O assunto, agora, era ainda mais delicado do que parecia.
- “Acontece o tempo todo. E é muito mais comum do que imaginamos.”
Há pessoas que ferem porque estão feridas. Intoxicam porque carregam em si dores não resolvidas, dores que, sem saber lidar, vazam para os outros e vão contaminando seus vínculos mais próximos. O relacionamento tóxico com o outro machuca. Mas o relacionamento tóxico consigo mesmo envenena em silêncio, todos os dias, gota a gota, pensamento a pensamento, lento, quase imperceptível. E justamente por ser silencioso, é o mais difícil de perceber. E talvez, o mais urgente de curar.
Esse veneno, às vezes, se disfarça.
Disfarça-se de autocobrança, perfeccionismo mascarado de responsabilidade...
Disfarça-se de cuidado com o outro, convencendo de que sofrer pelo outro é virtude.
Manifesta-se na rigidez com que alguém se julga, julgando sempre com severidade, como se carregasse dentro de si um tribunal permanente.
Há prisões sem grades. E venenos sem rótulos.
É possível ser cruel consigo mesmo sem nem se dar conta. Tudo vai se acumulando em pequenas doses: pensamentos duros, exigências irreais, negações constantes, culpas antigas. Frases que repetimos no escuro da mente, onde o veneno é destilado gota a gota: “Eu sou um peso.” “Eu sempre erro.” “Eu não mereço.” “Eu nunca sou o bastante.”
Você conhece alguém assim? Aquele tipo de pessoa que carrega dentro de si um juiz severo, que o acusa, cobra e condena o tempo inteiro? Que, mesmo quando acerta, encontra algum porém? Que vive se culpando, tentando ser sempre perfeita, sufocada por alguma vergonha do passado que não supera e, muitas vezes, se paralisa de medo ao menor risco de errar?
Muitos vivem assim. Bebendo pequenas doses de autossabotagem todos os dias. E acreditando que isso é normal. Você já se percebeu tomando esse veneno, sem nem notar?
Carlinhos ficou quieto. Cabisbaixo, seus pensamentos buscavam compreender. Ergueu o olhar e, como se algo destravasse por dentro, murmurou em voz baixa:
- “Outro dia, olhando para o meu pai, pensei que ele adoeceu, não no corpo, mas na alma. Sempre achei que fosse apenas rígido e sério demais, mas hoje vejo que vive em guerra consigo mesmo. Ele se cobra o tempo todo, se culpa como se estivesse sempre devendo algo. Ele se compara e se sente menor. Carrega dentro dele uma voz que o acusa, que lembra tudo o que não foi, não fez ou deixou passar. Ele vive para agradar os outros e, nesse esforço, parece estar deixando de existir.”
Ficamos em silêncio, lado a lado, dando espaço para a dor se expressar e descansar.
Então falei baixinho, pois a ferida ainda estava aberta, mas ansiava por uma fresta de esperança:
– “Carlinhos, se é possível se intoxicar, também é possível se desintoxicar. Isso exige tempo e coragem, mas começa com algo muito simples: perceber. Perceber o tom da própria voz, as palavras que repete para si, os julgamentos, o descanso que se nega, a culpa por não corresponder às expectativas. Permitir-se errar sem se destruir por dentro, ter coragem para dizer não quando algo fere. Retomar a própria voz e reconhecer seu valor, mesmo que ninguém veja. Porque, quando nos acolhemos por dentro, o veneno perde a força.”
- “Acho que meu pai nunca se permitiu isso...”, murmurou, como uma nova compreensão.
– “Talvez não. Mas você pode.”
Ele sorriu, não um sorriso de quem esqueceu a dor, mas de quem decidiu não se abandonar dentro dela. Naquele dia, saímos daquela sala com menos certezas... e mais consciência emocional. Talvez não exista mesmo um produto eficaz para exterminar relacionamentos tóxicos e abusivos. Mas há algo mais poderoso do que qualquer inseticida: a lucidez. Lucidez para reconhecer que o amor, o verdadeiro, não fere, não exige perfeição, não anula ninguém. E se o primeiro amor que precisa de cura for justamente aquele que temos conosco?
Afinal, ninguém pode ser inteiro para o outro enquanto estiver pela metade dentro de si. Talvez a cura se inicie no instante em que ousamos olhar para o que machuca e dói, e nomear. Reconhecer e dizer: isso me fere. Isso não é amor. Isso não me cabe mais.
Muitas vezes, quem intoxica o outro também está intoxicado por dentro. Entretanto, nem sempre quem é toxico sente culpa, remorso ou tem consciência disso. O verdadeiro antídoto, para ambos os lados, é o autoconhecimento e o autocuidado.
Tempos depois, Carlinhos e os pais se mudaram para o exterior.
Uma nova etapa da vida, com novos rumos, trabalho e recomeços.
Quem sabe, essa seja mesmo a beleza da vida.
Afinal, o futuro não está escrito em pedra, está escrito na água.
E a água muda a todo instante, flui e se adapta.
Cada escolha feita a partir de agora pode nos aproximar de pessoas que realmente nos amam.
Porque sempre é tempo de mudar, sempre é tempo de perdoar e de amar.
E, sobretudo, sempre é tempo de se escolher...
O que você vai escolher fazer a partir de hoje?
Seguimos juntos nessa jornada?
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.