Crônica #133 | Na doce ilusão da ignorância.
- Redação neonews
- há 7 dias
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Existir... sem, de fato, viver?

O que você encontrará nesta crônica:
"Você está vivendo ou apenas existindo, esmagado pelo peso da apatia e das ilusões? As feridas da vida doem e, muitas vezes, é mais fácil fingir que está tudo bem do que encarar a dor de frente. Acreditar que não saber é mais seguro e escolher a ignorância, seja sobre o que for, faz a vida parecer doce. Mas será que viver na ignorância traz cura? Que paz é essa que depende de fechar os olhos para a verdade? Não há cura na fuga, nem paz na negação. O medo pode ditar a vida, mas será que consegue fugir da verdade? O que nos falta para romper o ciclo, encarar a realidade e escolher coragem e lucidez?"

I. A frieza da apatia.
Naquele sábado de junho, o céu se mostrava limpo e a brisa suave. O encanto das festas juninas se fazia presente, talvez pelo aconchego das comidas típicas ou pelo calor humano que essa época do ano sempre oferece. O fato é que, ali, entre bandeirolas coloridas, estava o nosso pequeno grupo de amigos.
A conversa corria solta, entre risadas e comidas, quando Sueli e Marcos chegaram abatidos. Quem os conhecia, sabia que não era apenas cansaço físico. Havia um abatimento que se estampava em seus olhos. E o motivo, logo soubemos: a filha.
Antes que ela se acomodasse, puxamos Sueli com um sorriso:
- “Vamos com a gente nas barraquinhas! Um pouco de música e um gole de vinho quente vão te animar. Porque essa apatia, amiga?” No caminho, ela acabou nos contando o que a deixava tão desanimada.
- “Sabe... enquanto muitos jovens sonham em sair de casa para conquistar independência e realizar grandes sonhos, minha filha está fazendo o caminho inverso. Ela saiu de casa há muitos anos, se afastou de tudo o que lhe era familiar em busca de algo maior. Instalou-se numa metrópole distante, onde viveu e se realizou profissionalmente”, assim ela falava.
Giovana, há tempos emocionalmente distante, vivia uma travessia difícil. Não era apenas uma questão de geografia ou de decidir se voltaria ou não. Algo havia se deslocado dentro dela, como se aquele lugar que um dia a acolheu já não lhe servisse como antes. Sentia que não cabia mais lá, como se fosse uma estranha em sua própria história. E a ideia de retornar às raízes, embora presente, estava carregada de inseguranças, como se recomeçar em solo conhecido exigisse mais coragem do que partir para o desconhecido. Parecia que ela vivia entre mundos e, mais ainda, entre versões de si mesma que já não reconhecia com clareza.
- “E o relacionamento dela, como está?” perguntei, já desconfiando da resposta.
- “Ah, meus amigos...”, ela suspirou, tomando um gole de vinho quente.
- “Está naquela relação disfuncional que ela ainda acredita que é indispensável na vida dela, mas, na verdade, parece mais uma corrente que prende seus pés.”
- “Aquele rapaz, lembra dele?”
- “Lembro sim... Foi no encontro do seu aniversário, não foi?”
- “Isso mesmo.” Ela concordou, rindo meio sem graça.
- “Só que, em vez de somar, essa relação só tira dela. Virou mais um tipo de labirinto que confunde o equilíbrio emocional e apaga seu senso de direção. Além de não oferecer apoio, drena sua energia e é como se ela tivesse perdido aquela bússola interna, sabe? Aquela que lembra quem a gente é de verdade. E sabe o que é pior?”, ela continuou, “Mesmo estando tão infeliz, parece que ela é a única que não percebe isso. Ou, sei lá, não quer admitir, porque reconhecer a verdade significa desmontar toda a ilusão desse relacionamento por conveniência, que, na verdade, ela própria sustenta.”
Na tentativa de oferecer um consolo, tentei argumentar:
- “Encerrar um vínculo assim pode ser difícil, amiga... Muitas vezes, exige apoio terapêutico. Mas, para que isso aconteça, seria preciso, antes de tudo, que a própria pessoa perceba e se coloque diante da vida como autora do próprio destino, e não como vítima das circunstâncias.”
Quando se adota essa postura, a coragem desperta, abrindo caminho para romper com o que aprisiona. Surge espaço para relações autênticas, além de ser, obviamente, um passo essencial no processo de maturidade emocional. Sabemos que amar não é apenas suportar; é escolher. Afinal, toda escolha saudável começa pelo cuidado consigo mesmo.
- “Ela está apática”, desabafou Sueli sobre a filha.
Naquela travessia, Giovana havia afundado lentamente em um estado de apatia, mas, curiosamente, por dentro, uma ansiedade intensa parecia que a inquietava sem descanso. Em alguns momentos, lembrava um quadro de depressão; em outros, a baixa autoestima dominava, levando-a a se desvalorizar e a destacar apenas o que julgava ter de ruim em si mesma. Era como se estivesse perdendo a própria identidade, num estado de entorpecimento da alma, uma espécie de anestesia psíquica.
- “E, na apatia, ela vai adiando as coisas que são importantes, deixando para outra hora, para amanhã, para quando der, não é?”, complementei sua fala.
Os dias, na frieza apática, passam sem deixar marcas. A vida perde o brilho, e a alma se recolhe nas sombras e na luz apagada. A pessoa apenas existe: sem raiva, sem tristeza, sem alegria; sem decidir, sem reagir. Ainda que houvesse laços verdadeiros na vida de Giovana, ela se enganou ao acreditar que amizades verdadeiras não precisavam de cuidado e que o amor bastava por si só. Chamava isso de “amizade de baixa manutenção”, quando, na verdade, era apenas solidão disfarçada, uma forma de acreditar que não precisava de ninguém, considerando-se com maturidade emocional.
O tempo passou e, sem troca, até quem a amava foi se afastando. Não por falta de amor, mas pelo cansaço de acenar no vazio, por sentir que com Giovana já não havia espaço para reciprocidade. Restaram-lhe a solidão e a ilusão de autossuficiência, um estado que, cedo ou tarde, dói e sufoca.
Quando menos se espera, a pessoa se vê no nada: num vazio profundo, onde tudo perde o sabor, o sentido da existência se dilui e o espírito adormece. Pode até chegar ao ponto de não se reconhecer, e essa talvez seja uma das dores mais profundas: a de perder a própria identidade.
Relações vivas que não têm presença e partilha viram relacionamentos de mão única, aqueles em que só há interesse quando há conveniência, quando se precisa de algo.
O amor, para ser ponte, pede que ambos os lados caminhem em direção ao meio. Do contrário, ruirá, deixando abismos entre os que um dia quiseram estar lado a lado.
Mesmo com a música da festa junina ao fundo, um silêncio pesado pairava no ar.
- “Por que a apatia é tão devastadora?”, murmurou Sueli, olhando para o copo quase vazio. - “Olhe para esta fogueira diante de nós. Tentar reacender uma brasa soterrada não é o mesmo que acender um fósforo; é despertar algo que dorme sob camadas de cinza. Isso pede mãos pacientes, exige cuidado, presença e tempo. Voltar a sentir depende da permissão de quem sofre, mesmo que o retorno seja de forma lenta e gradual.”
Essa dor da apatia é discreta: não grita, não explode, mas pesa e paralisa. Corrói o ânimo e o prazer de viver, transformando-se em uma prisão confortável disfarçada de descanso. A pessoa se fecha, evita sentir, e a vida permanece ali, às vezes por anos, presa entre o medo de mudar e o medo de continuar.
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Il. Dores do sofrimento.
Por vezes, na estagnação, corpo e mente começam a protestar, sinalizando que algo precisa mudar. Só então se percebe a urgência de resgatar os desejos e valores verdadeiros, livres de ilusões e máscaras de conveniência. Essa acomodação não é ausência de dor; é um tipo de dor congelada.
E por que, tantas vezes, insistimos em manter essas dores? A alma, quando sofre, se afasta de si mesma e esquece que nasceu para vibrar e caminhar em direção ao bem, à beleza e a um propósito maior, que a vida sempre nos convida a alcançar.
O sofrimento é uma experiência comum a todos nós, seres humanos. Porém, nem sempre é fácil de compreender ou aceitar. Todos sofrem, cada um por suas razões e à sua maneira. Muitas vezes, na tentativa de aliviar esse peso, buscamos compensações em prazeres ou conquistas. Mas tais ilusões nunca se sustentam por muito tempo. Quando falham, a mente encontra refúgio em forma de um desligamento interior: por fora, tudo segue; por dentro, a alma se apaga. Nossa amiga vivia esse estado de apagamento interno. Mas afinal, qual é a explicação e a realidade do sofrimento? O que significa sofrer, carregar consigo um labirinto infinito de dores, de todas as espécies?
Desde os tempos antigos, filósofos e mestres espirituais têm buscado compreender o mistério que é o sofrimento humano, uma realidade complexa, profunda e inesgotável, que desafia a razão. Tanto no Oriente quanto no Ocidente, a raiz da dor tem sido identificada na ignorância. Ignorância não no sentido intelectual, mas na desconexão com a verdade, no desconhecimento das causas profundas que nos conduzem ao sofrimento.
A dor da filha refletia-se quase de forma palpável nos pais, visível nos gestos e nas palavras. O paradoxo era doloroso: outrora tão firme e determinada diante da vida, Giovana estava infeliz, mas ela se recusava a acreditar e a mudar. Existia nela uma espécie de cegueira emocional, uma negação sutil, quase imperceptível, como um véu sobre os olhos, que a impedia de enxergar o que todos que a conheciam percebiam com clareza: aquele modo de viver a adoecia lentamente, sem que ela mesma notasse.
Além do relacionamento amoroso complicado, ela havia absorvido uma forma distorcida de se vincular ao mundo. Giovana parecia valorizar apenas as pessoas superficiais, cercando-se de presenças sem raiz, resultando em laços frágeis e incapazes de nutrir a alma.
A carência de encontros reais pode nos cercar de pessoas, mas, por dentro, permanecemos sozinhos.
- “Eu me dediquei muito aos meus filhos, estou sofrendo com essa situação que se prolonga tanto...”
Sueli, mãe dedicada do jeito que era, adoeceu junto. Já havia ultrapassado as lágrimas e carregava no peito um silêncio pesado. Foi nesse silêncio que algo se clareou, trazendo a compreensão de que o sofrimento da filha não era apenas dor, era também ilusão.

lII. As correntes da ignorância.
Havia algo mais profundo do que o sofrimento em si. Existia uma ilusão delicada, porém poderosa, que precisava ser desfeita: a doce ilusão da ignorância.
Então perguntei a ela:
- “Por que você acha que é tão difícil perceber o que nos machuca? Será que esse tipo de resistência está escondido nos complicados e sutis labirintos da ilusão?”
Sueli deu meio sorriso, balançou a cabeça e devolveu:
- “E você, o que acha?”
- “Sabe, a questão é que assumir a verdade é escolher a lucidez. Não é fácil, porque exige esforço consciente, autoconhecimento e responsabilidade.”
O medo seduz muita gente a permanecer na ilusão da ignorância. Suas correntes aprisionam o pensamento, funcionando como algemas sutis que bloqueiam a clareza e prolongam o sofrimento. A ignorância sempre parece mais doce, menos perturbadora, oferecendo um alívio falso e temporário, enquanto tentamos anestesiar a dor com desculpas, distrações, vínculos frágeis e até racionalizações.
Não é por acaso que Sócrates dizia que todo erro humano vem da ignorância. Criamos dores e conflitos ao tomar decisões que nos ferem porque, sem sabedoria sobre a vida e sobre nós mesmos, não conhecemos quem realmente somos nem o que desejamos de verdade. Por isso, ele insistia: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.”
Platão, seu herdeiro filosófico, ampliou essa visão, mostrando que a alma sofre ao se apegar às aparências e ilusões, perdendo de vista a verdade, que é eterna. Falava da tendência humana de permanecer na escuridão, onde não é preciso encarar a luz, essa mesma luz que, no início, cega e fere os olhos, mas depois ilumina. Assim, seguimos presos às sombras da caverna e ao ciclo da dor.
Por isso, dizia:
“O pior dos males é a alma acreditar que a mentira é verdade.”
Sueli sabia disso. No Oriente, Buda também apontava na mesma direção: o sofrimento nasce quando não enxergamos a realidade como ela é, quando nos apegamos a ilusões, medos e desejos. A mãe sentia a dor de ver a filha escolher, consciente ou não, o conforto morno da ignorância, onde não é preciso tomar decisões e nada muda. Permanecer na rotina mecânica parecia mais simples. Talvez Giovana tenha escolhido não sentir para não sofrer.
Para os estoicos, sofremos não só pelo que nos acontece, mas por não compreender o porquê. Presos à superfície da dor, onde ela fere mais e nos sentimos impotentes, ignoramos suas raízes e a lógica mais profunda da vida. Mas o preço do entorpecimento é alto: apaga-se a dor, mas também a alegria. Anula-se o medo, e junto com ele vai a coragem. Fica-se num terreno neutro, estéril, sem cor, sem som, onde o vazio só tende a crescer.
Há um limite que ninguém pode atravessar pelo outro, nem mesmo uma mãe. Por isso, ela lamentava com compaixão. Sabia que, cedo ou tarde, cada pessoa precisará escolher entre a doce ilusão da ignorância e a verdade, aquela que conduz à libertação.
Sueli, como mãe, sofria por empatia e impotência, sentindo a filha se esvaziar com suas mudanças emocionais. Todos entendiam, pois em muitos momentos, já escolhemos o adormecimento, fugimos de verdades e decisões e dissemos “estou bem” mesmo sabendo que não estávamos. O despertar é exigente; pede presença, lucidez e coragem. Nem sempre estamos prontos, mas a vida, com seus caminhos, encontra formas de nos preparar.
Um amigo, como que desafiando, afirmou que “não decidir já é uma forma de decisão.” A frase nos atravessou a todos, como uma rajada de vento frio. Porque sim, era verdade. Muitos evitam escolher para não errar, mas a vida, implacável, decide por nós, trazendo e fazendo-nos enfrentar as consequências das omissões.
Chega uma hora em que a vida pede um gesto firme, um ato de presença, um posicionamento diante de si mesmo. Viver é assumir responsabilidade sobre si. É tomar partido de si, levantar-se no meio da própria sombra e dizer: “isso não me serve mais” ou “não quero mais me abandonar.”
E então a alma respira, as feridas encontram sentido, e a lucidez sobre as próprias sombras, escolhas e erros se torna uma luz que guia. É nesse ato que nasce a verdadeira liberdade, aquela que nos permite existir por inteiro, quando enfim temos a coragem de abandonar a doce ilusão da ignorância.
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.