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Crônica #125 | Viajante das entrelinhas.

Parte 3: O grito da motociclista.


Capa da Crônica #125 | Viajante das entrelinhas.
neOriginals Crônicas

O que você encontrará nesta crônica:


"Crise: ruído ou revelação, desordem ou anúncio? Só de ouvir a palavra, algo em nós se contrai. Costuma parecer que o mundo desmorona, mas não seríamos nós mesmos que já vínhamos trincando por dentro? A crise marca o ponto-limite onde o que não serve mais se desfaz. Chega para queimar os excessos, os enganos, as velhas vestes, despindo o que já não somos. Impõe uma travessia sem garantias, mas não é castigo; talvez seja lapidação ou um chamado. Surge como dor, mas guarda, em si, o impulso do recomeço. Em vez de temer, não seria pior passar por ela sem escutar o que veio revelar? O que pensa sobre isso?"




I. O movimento das pausas.


Apesar da velocidade da moto, os gritos da motociclista, cheios de energia, foram se dissipando no ar. Mas deixaram comigo algo mais duradouro. Não foi o susto, nem o som em si. Foi a vibração. Sim, a vibração da coragem, pairando no espaço entre nós. Atravessou o silêncio e, com o peito reabastecido por aquela força inesperada, continuei pedalando, ainda mais presente.

 

É curioso como, muitas vezes, nessa estrada interior da vida, um grito alheio é o que basta para romper e nos despertar da dormência que, até então, nem sabíamos carregar.

 

Estava a caminho da província de Yamagata. A bicicleta seguia firme, acompanhando a costa oeste do Mar do Japão. Já próximo da capital, tomei a estrada que se curvava para o leste, em direção às montanhas. O mar ia se despedindo com seu imenso azul, enquanto a serra me acolhia, saudando-me com seu verde refrescante. Foi nesse trecho de transição que um pneu esvaziou. Meu corpo, que já pedia uma pausa, pareceu encontrar cumplicidade na bicicleta. Como se, por solidariedade, ou sensível ao meu cansaço, ela compreendesse. E parou.

 

Já era perto do horário do almoço. Procurei um local seguro e comecei os preparativos para o conserto. Foi quando ela voltou: a motociclista. Dessa vez, sem gritos - apenas um gesto. A presença. Parou ao meu lado, retirou o capacete e, com um sorriso tranquilo, ofereceu ajuda.

 

Mieko era seu nome. Bonita, cabelos presos e olhos atentos. Vestia-se com a firmeza de quem conhecia o asfalto e seus riscos: calça e jaqueta de couro. Acima de nós, uma frondosa cerejeira, em cuja sombra, pudemos recompor as energias. Um pequeno restaurante nos serviu o essencial, e o tempo fluía sem pressa, nas palavras que atravessavam histórias e fronteiras.

 

A bicicleta em descanso, o motor da moto silenciado.  E nós dois, viajantes de mundos tão distintos, estávamos ali. Conectados, primeiro pelo grito que despertou; depois, pela ajuda silenciosa que chegou como abrigo, em um gesto de fraternidade entre viajantes de duas rodas.

 

Percebi que o movimento não é apenas sobre avanço. Ele também se manifesta nas pausas, na escuta atenta ao que o caminho tem a nos dizer, nas muitas conexões que enriquecem nosso percurso e nas entrelinhas dos encontros.

 

Lembrei-me de uma frase de Albert Einstein que me marcou: “A vida é como andar de bicicleta. Para manter o equilíbrio, é preciso se manter em movimento.” Sempre gostei dessa ideia, mas hoje percebo que nem todo movimento precisa ser apressado. Muitas vezes, o verdadeiro movimento pode estar justamente na pausa. Naquele ato de respirar fundo antes de tomar uma decisão. Ou no silêncio, muitas vezes precioso, que antecede uma palavra importante.

 

Com o tempo, percebi que o equilíbrio entre avançar e pausar é uma força dual: uma que nos impulsiona, com urgência, para a vida, e outra que nos acolhe, oferecendo espaço para a reflexão.  Mesmo na solidão do percurso, ambas, à sua maneira, me lembravam que sempre há algo ou alguém que nos mantém em movimento. Há pausas inesperadas que a vida, sabiamente, nos impõe, exigindo uma afinação de nossos sentidos: a real experiência de sentir, ouvir e, sobretudo, respeitar o tempo que não obedece aos nossos relógios. Por isso, tão essenciais quanto o próprio movimento, são as pausas em nossas existências.

 

Como você lida com o equilíbrio entre avançar e pausar na sua vida cotidiana?

Já viveu pausas que mudaram sua rota mais do que qualquer decisão tomada?

 

Energia recarregada, bicicleta consertada.

Ela olhou para minha companheira de estrada e disse: “Charinko”.

O nome ficou: um batismo feito à beira da serra, pela mulher de espírito livre.

Ela seguiu montanha acima com um chaveiro pendurado em sua moto – presente meu, moldado com as minhas mãos ainda no Brasil, com uma frase que simbolizava a ligação entre nossos países: “Brasil-Japão, sempre no coração.”

Com Charinko nomeada, ela deixou de ser apenas uma bicicleta. Tornou-se memória em movimento.


O caminho agora se inclinava com maior intensidade. Os bambuzais me cercavam em seus silêncios, enquanto a trilha se estreitava conforme eu avançava. Meu pedalar tornou-se lento, e eu, mais atento, pois as curvas exigiam mais do que apenas força. Pediam mais visão, escuta, tato aguçado e o instinto que ia se aflorando em meio ao desconhecido. Meu pensamento não estava apenas no destino; a exigência era pensar em como eu me entregava a ele, ali, naquele trajeto. E, como todo viajante da alma, percebi que partes de mim ficavam para trás. Outras, ainda pesadas demais, insistiam em seguir. Talvez o verdadeiro trajeto, ali, tivesse sido justamente desapegar-se do excesso para, enfim, sentir a leveza no movimento.

 

Desci, sentindo o caminho com cautela. Sem muita opção de escolha, apenas seguia em frente, deixando que o ritmo da gravidade conduzisse o movimento. Era curioso perceber, então, que nem todo avanço precisa vir da força; às vezes, basta apenas não resistir ao fluxo.

 

Cheguei, antes do pôr do sol, a um pequeno hostel. Fiquei ali, parado por longos instantes, absorvendo aquele céu que oscilava entre o laranja e o azul, parecendo pintado à mão. Reconhecia que aquela sublime paisagem não se repetiria jamais, pois esses espetáculos são únicos: nunca são os de ontem, jamais serão os de amanhã. Por isso, quando a alma pedir, pare e contemple. O que não vivermos hoje pode nunca mais ser vivido.

 

Mais tarde, um banho de imersão em águas termais a céu aberto, um rotenburo, dissolveu os últimos vestígios de cansaço. Na quietude quente da água, era como se o corpo, antes rígido, recordasse também sua natureza líquida, aquela que flui, acolhe e transforma.


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Il. O reencontro, na brecha do tempo.


No restaurante, sentado ao nível do chão, diante de uma mesa baixa, surpreendi-me ao avistar Mieko do outro lado. Ela sorriu e abanou sua mão, e logo me vi diante de um prato desconhecido: “warabi no nimono”, feito com brotos de samambaia colhidos na primavera. Mieko explicou que era um ingrediente tradicional, apreciado por sua leveza e frescor.

 

À frente, um jardim de pedras meticulosamente bem cuidado, um “kare-sansui”. As pedras dispostas com precisão sobre as ondas desenhadas na areia formavam uma simbologia silenciosa, que não pedia entendimento, apenas contemplação. Ali, o silêncio falava forte, pois algumas paisagens não foram feitas para serem atravessadas com os pés, e sim, apenas, com a alma. Talvez por isso, e sem precisar seguir adiante, sentamo-nos em um banco de madeira, onde o tempo nos concedeu horas de conversa.


Em meio às trocas, perguntei a Mieko como, dentro de uma sociedade tão tradicional, decidira tomar a estrada de moto, um gesto muitas vezes ainda visto como uma ousadia masculina.

 

Nem deu tempo de terminar a pergunta. Ela já soltava uma gargalhada livre, daquelas que não pedem licença e carregam, no fundo do som, histórias vividas, que insistem em voltar sempre que o riso encontra brecha. Não era novidade para ela. Já tinha ouvido aquilo de outros tantos viajantes curiosos com sua escolha. Contar sua história de vida era, para ela, de certo modo, parte do seu caminho.

 

Após a gargalhada, ela respirou fundo. Depois, começou a contar que havia sido casada por meio de um arranjo tradicional. Falou com a maturidade de quem já fizera as pazes com o passado. Aos 27 anos, vivia aquilo que diziam ser o certo: casamento, casa, maternidade. Tentava caber no molde de mulher exemplar, esposa dedicada, futura mãe. Mas os anos de tentativas frustradas de engravidar, somados à dor calada pelo peso das cobranças silenciosas, foram, pouco a pouco, corroendo a relação. Sentia-se deslocada diante da pressão constante para corresponder às expectativas internas e externas. As exigências para cumprir os papéis predefinidos haviam se transformado em uma prisão. Já não conseguia mais sustentar aquele modelo de vida que não refletia sua verdade, apenas porque era considerada o “certo” por todos.

 

Há muitas dores que não gritam, mas pesam fundo, nascem do esforço de caber onde não pertencemos. Quantos de nós, hoje, estamos realmente vivendo o que escolhemos? E quantos apenas interpretando papéis que nos deram ou disseram ser o certo?


Qual é a história que você tem vivido?




lll. O grito da crise.


Mieko foi se perdendo e se deprimindo em meio a sucessivos episódios, sem saber ao certo se era tristeza ou cansaço. Quando se deu conta, debatia-se em uma forte crise sem nome. Talvez existencial. Daquelas que nos obrigam a despir cada máscara e, diante do espelho das incertezas, buscar o encontro com nós mesmos. Como acontece com tantas pessoas, uma pergunta insistia em crescer dentro dela: “Quem sou eu, se não for o que esperam de mim?”

 

Na procura por respostas, precisou se ver sem os barulhos do mundo ao seu redor.  Sentia que seus propósitos pessoais, e o próprio sentido da vida, lhe escapavam, enquanto questionava sua identidade. Suas certezas, antes firmes, desfaziam-se com o tempo. E ela se perguntava por que estava ali, angustiada e distante da alegria que antes a preenchia. O que restava era um grande e profundo vazio, que silenciosamente desmoronava suas estruturas internas.

 

Até que, um dia, sem suporte interno, cansada e sufocada, ela gritou. Gritou por liberdade.

Crises, quando profundas, também gritam. Mas nem sempre para fora. Às vezes, é o grito silenciado que mais impulsiona um novo recomeço. Mieko gritou, e o som não veio em palavras, mas em decisões. Rompeu com o casamento, pediu o divórcio, enfrentou a sociedade e todas as suas consequências.

 

Recusou-se a voltar ao passado e não retornou à casa dos pais. Sabia que, para seguir adiante, precisava redefinir sua identidade e seu propósito. Permaneceu por um tempo, em meio ao ritmo intenso, na agitada Tóquio. Morava em um pequeno apartamento, trabalhava, vivia, ou ao menos tentava viver, enquanto buscava mais liberdade e um caminho que a levasse ao encontro de seus desejos mais profundos.


Existem crises que chegam como aquelas subidas íngremes, exigindo total atenção e esforço, nos apertando em respirações curtas e pesadas. Outras surgem como curvas fechadas: não basta apenas enxergar; é preciso ouvir, sentir e confiar no instinto. Às vezes, uma mudança radical em direção ao desconhecido não é uma escolha fácil, mas uma questão de necessidade para a sobrevivência interior.

 

Ela transformou sua dor em movimento ao romper com o silêncio aprendido, com o casamento e com os papéis que esperavam dela. A moto, então, deixou de ser apenas uma máquina: tornou-se a metáfora viva de seu grito, pulsando, girando, atravessando o Japão. O motor, com seu ruído, ressoava como o som do seu renascimento, igual a uma força que impulsionava sua liberdade. Era o motor do seu grito, que finalmente se espalhava pelo mundo, depois de tanto tempo contido.

 

Quantas e quantas vezes também somos levados adiante pela dor que não coube no peito? Pelo amor que partiu ou pelas palavras que engolimos? E, ao invés de ser uma ruína, a crise se torna ignição. Por mais aguda que seja, a curva da crise pode ser o único caminho possível para voltar a si mesmo.

 

Quantos de nós já gritamos em silêncio?

E quantos, como Mieko, transformamos esse grito em estrada?

Mieko não fugia; ela retornava. Não ao passado, mas a si mesma.

 

Você acredita que uma crise é um colapso ou um despertar?  Ela causa muita dor e nos desestabiliza, mas também nos acorda e nos impulsiona.  Talvez exista aí um chamado: um tempo de revisitar caminhos, redefinir prioridades e reconstruir sentidos. Não para a destruição, mas para um recomeço.

 

Há momentos em que a vida nos convoca a sair da rota conhecida, desaprender o caminho previsível e nos aventurar por trilhas imprevisíveis. Mieko atendeu a esse chamado. Quando a estrada asfaltada da tradição já não sustentava mais seus anseios, ela se afastou para uma estrada de terra, carregada de vento e de solidão escolhida. Assim como ela, muitos de nós, em algum momento da vida, somos desafiados a abandonar as certezas consolidadas, e a confrontar as verdades simples e duras, que se encontram além dessas certezas. Toda crise, afinal, é um percurso que nos ensina a desaprender, a renascer a partir do que esquecemos de ser.

 

Cada ser humano carrega em si um mapa emaranhado de curvas, subidas e descidas, trajetórias que, em sua complexidade, moldam a rota e o curso de seu destino. Porém, há momentos em que, diante das incertezas do caminho, a verdadeira força não está em tentar vencer a estrada, mas em simplesmente permitir-se ser levado por ela, em parar de lutar contra o fluxo que ela impõe. Tal como a gravidade, que conduz a trajetória sem esforço quando a mente já está cansada, a crise também segue seu próprio curso. Se nos entregarmos ao fluxo, talvez ela não nos destrua, mas nos revele as paisagens que, de fato, precisamos descobrir. No fim, a curva que parecia perigosa se transforma em uma ponte. A crise, que parecia um abismo sem fim, se torna a estrada que nos leva à origem. E aquele que nos ofereceu a liberdade, mesmo partindo, permanece na estrada, viajando conosco, na memória do que nos ensinou.

 

Na manhã seguinte, nós nos despedimos. Com a leveza de quem sabe que o tempo faz e desfaz distâncias, ela partiu para o sul, e eu segui minha jornada rumo à Hokkaido, a ilha no extremo norte. Dois pontos opostos, duas bússolas apontando direções que apenas o tempo e a experiência poderão revelar. Cada um seguiu seu caminho, desafiado pelos obstáculos e guiado pela própria necessidade de se descobrir. O terreno, vasto e imprevisível, guardava segredos que só seriam revelados ao longo da caminhada.

O horizonte se expandia a cada nova região, a cada passo conquistado, mas também se tornava mais enigmático.


O caminho, antes seguro, logo se revelou uma rota de descobertas, rompida pelo imprevisto, como um vento forte que rasga a calmaria.


E o caos se fez caminho.

 

Continua na parte 4: No caminho do furacão.






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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.


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