Configurando a paternidade
No início da noite, após um dia de trabalho, fui jantar num shopping próximo do local do escritório. Quando eu descia por uma escada rolante, vi na ala inferior vários quiosques de doces, brinquedos e outros atrativos para crianças. Quase encostado a uma parede, estava isolado, um senhor com seu carrinho de pipoca. O carrinho construído à imagem de uma minivan, estava iluminado com várias lâmpadas coloridas, estilo bem high tech. Um monitor festivo, indicava todos os produtos que tinha para oferecer aos clientes. Atraente no seu design moderno chamava muita atenção, porém, com poucos consumidores no local. Somente algumas mães acompanhando os seus filhos pequenos, e jovens em idade escolar estavam ali, interessados nos produtos. Como um gatilho rápido e certeiro, o semblante daquele senhor me fez voltar, imediatamente, num dia específico da minha vida.
Como num filme, tudo ao redor pareceu estar congelado. A própria escada rolante não se movimentava. Assim, a minha mente retrocedeu por vários anos, chegando na minha adolescência.
Estava sentado num ponto de ônibus, aguardando a condução para ir para casa. Era um entardecer frio, com seus ventos gelados a correr por entre os prédios altos. Ali estavam umas cinco pessoas. Num determinado momento, surge um senhor empurrando apressadamente, quase que correndo, um carrinho de pipoca com uma criança sentada na bancada. Com sacrifício ele puxa para cima da calçada, e coloca atrás da cobertura do ponto de ônibus; como se estivesse se escondendo de algo. Auxiliamos ele, erguendo e empurrando o carrinho. Muito cansado, com respiração ofegante, tenta se recuperar agachando um pouco. Perguntei o que tinha acontecido. Ele permaneceu calado e estático, olhando preocupado em direção ao lado que tinha vindo. Eu não insisti na pergunta, mas logo em seguida a garotinha, de aproximadamente cinco anos, pergunta:
- “Papai, por que correu tanto?? Eu gostei, parecia um passarinho voando!! O senhor nunca correu assim!”.
- “Estamos correndo para voltar para casa mais cedo hoje. A mamãe está esperando”.
O pai, quieto permanece, e calado continua.
A sua pequena filha, lindinha, com os cabelos encaracolados, vestia-se de forma simples. Por causa do tempo gelado, pequenas luvas coloridas de lã nas mãos, e botinhas de borracha nos pés. Um cachecol e um gorrinho de lã protegiam sua cabeça. Balança as perninhas esperando mais uma corrida como diversão.
- “Quietinha minha filha, deixa eu descansar um pouco. Você já é uma mocinha e está mais pesadinha agora!”
Falava com a filha de modo carinhoso, apesar dos seus olhos demonstrarem aflição.
No colo de seu pai, ela continua falando e pendurando no seu pescoço; alheia à face de medo e desespero dele.
Perdeu a última novidade das Crônicas? Então confira este post: Podcast Crônicas #5 | Grandiosidade do Perdão
Pai! Quais os sentimentos que afloram quando ouvimos essa palavra?!
Refletir sobre os sentimentos que surgem, trazer os elementos enredados nesse envolvimento, podem nos levar a um processo maior de amadurecimento, fazendo com que haja um florescer de novas percepções e compreensões. Em cada fase de nossas vidas, o nosso olhar vai se tornando diferente e mais profundo.
Papai, importante pessoa na nossa vida.
Esteja ele hoje presente ou ausente, conosco ou com outra família, neste plano ou em outro.
Independentemente de qualquer situação devemos honrá-lo, pela vida que nos concedeu.
O simbolismo do pai, nos remete à expressão de uma pessoa de poder e autoridade dentro de uma família. Aquele que como um rei, tem a capacidade de colocar lei, justiça, de ordenar, cuidar e zelar pelo seu reino.
A responsabilidade governando suas atitudes perante seus filhos. Aquele que representa proteção e segurança, aquele que tudo faz pelo bem e pela felicidade do seu filho.
Recuperando sua força e respiração, permanece ainda abraçado com a filhinha no colo.
Ele ficou meio que camuflado pela pouca luminosidade do local. Coloca sua filha no chão, apaga o fogo do lampião, e cobre com um pano o seu carrinho de pipoca. Eu, ainda sem entender toda a cena que ocorreu em pouco tempo, tento compreender a real situação que os dois estavam vivendo.
Estava nessa reflexão quando surge um outro grupo, da mesma esquina, carregando mostruários de bijuterias, roupas etc. Logo então pensei: é a fiscalização da prefeitura contra os vendedores ambulantes. Dito e constatado. Os vendedores mais jovens conseguiram se dispersar, correndo o quanto podiam pelas ruas laterais. Muitos escaparam e alguns foram pegos. Ao se aproximarem mais, o carrinho de pipoca foi visto por um dos fiscais.
Quatro funcionários com porte físico forte, identificados com coletes de “Fiscalização”, vão em direção ao pequeno veículo de trabalho do pobre homem. Ele pede, encarecidamente, para não apreenderem. Eu e mais dois homens que ali estavam, também tentamos interpelar pelo ato. De nada adiantou. A bordo de uma caminhonete, tristemente o carrinho foi levado.
- “Papai por que eles levaram?” Pergunta a menininha.
Olhos cheio de lágrimas, segurando o desespero, o pai assim responde:
- “Filha... vai ter uma festa na casa daquelas pessoas que levaram. Lá vai ter um aniversário de uma menininha igual você, e faltava pipocas...”.
- “E os doces que a mamãe fez também?”
- “Sim filha, tudo para a festa, e amanhã vou lá buscar nosso carrinho”. Responde o pai, esforçando-se para não mostrar a profunda tristeza.
- “A gente não vai no aniversário?”. Retruca a menininha na sua inocência.
- “É muito longe minha lindinha!... amanhã eu trago um docinho para você....”
Agora fui eu a ficar em estado de choque, com esse fato que decorreu em poucos minutos. No primeiro instante, parecia que o universo tinha me preenchido de raiva, perplexo pela injustiça. Incompreensão sem limite, já que aquele era o instrumento de trabalho para a sobrevivência de uma família. E além de tudo, expondo uma criança àquela situação. Numa confusão de analogia, a minha razão deixou de existir. Incontrolável, eu estava estarrecido com tanta maldade.
Perdi o controle e xinguei os homens insensíveis.
Veio então o próprio senhor com os olhos cheios de lágrimas ainda, mas de forma já serena, me acalmar com uma simples colocação: “Tudo passa meu filho... Sei que um dia preciso tirar essa licença na prefeitura, vou ver se consigo. Amanhã vou lá no pátio e recupero o meu carrinho; só não queria mostrar para a minha filha que trabalhar é tão sofrido....” Foi um banho de água fria, entendi e me acalmei.
Admirei aquele pai. Homem bom e trabalhador, que lutava pela sobrevivência da sua família.
O pai ideal é aquele que assume a responsabilidade pelo seu filho, por uma outra vida.
Após os longos meses de gestação, em que se criam laços efetivos entre o filho e a mãe; é chegada a hora de sair do seu ventre e ter contato com outras pessoas. E é com o pai que será esse primeiro encontro. É ele que vai cortar o cordão umbilical simbólico, mantido até então, com a mãe. É ele que nos apresentará o mundo lá fora, nos tirando do universo exclusivamente materno. Sem dúvida nenhuma, um dos mais importantes pilares de nossas vidas.
Já dentro da condução e com as palavras daquele senhor, humilde e experiente, nos meus pensamentos; me sentei e me aquietei. A existência da razão. Mas qual a razão? Os funcionários cumpriram suas ordens e funções. O pai da menina pela única forma que sabia de trabalhar. E a criança?
Por um tempinho o ônibus ficou parado no ponto, precisava esperar passar aquele alvoroço na rua. Vi então o pai tomar nos braços a sua filha, e seguir o seu caminho. Ela por si estava feliz, que agora nos ombros do seu pai, se mantinha nas alturas. O coletivo segue devagar, paralelamente à calçada daquele senhor com a sua filhinha; caminhando agora de mãos dadas. Ela estava alegre e falava com seu pai... e assim a vida se fez.
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O pai que renuncia a muitas coisas em função dos filhos.
Adverso àquela situação, o pai fez valer a pena a vida, para sua filha. Naquele momento, aquele pai estava totalmente presente e preservando a integridade da pequena menina, que na sua inocência nada percebeu.
Muitos poderiam questionar se a atitude dele em relação à filha foi certa ou não. A lição naquele momento, de perda do instrumento de trabalho, do diálogo entre os homens de lei, das desculpas criadas para que não apreendessem seu carrinho, era para ele e não para sua filha. A presença do amor na sua plenitude, o amor visto de forma divina, talvez tenha sido assim a intenção na sua atitude. Para a criança, não era o momento certo para entender o universo complicado dos adultos. O pai, dentro das experiências já vividas, dentro das suas linhas de vida e razão, fez jus no livre arbítrio e na sua presença aqui nessa dimensão.
Diferente dos tempos antigos, temos hoje vários formatos de família. É difícil mudar uma cultura, então me pergunto se ainda temos aquela ideia, aquele modelo de pai autoritário, de pai provedor, aquele pai como figura central de uma família.
Pela sua função estruturante dentro da família, acredito que na essência, não deva ter mudado. Essa função estruturante é que, literalmente, participa da estrutura do psiquismo dos filhos.
As funções paternas são diferentes das maternas, porém, os papéis hoje estão mais flexíveis, tanto nas representações físicas como nas emocionais. Há uma nova identidade masculina, em que os pais estão assumindo e se envolvendo mais emocionalmente, com os seus filhos
Podemos pensar de forma diferente, considerando essas mudanças nas funções parentais.
As configurações de família estão com novos formatos. As famílias monoparentais, que antes prevaleciam ser só de mães, hoje também temos a só de pais.
Há um crescente número de uniões homoafetivas, com a união de dois homens ou duas mulheres. No entanto, haverá sempre um deles assumindo e exercendo a função paterna para os seus filhos.
É importante que na necessidade psicológica da criança, o pai possa assumir o seu papel, sendo capaz de ajudar na sua formação e amadurecimento. Ajudar a encontrar a finalidade e o consequente sentido para a sua vida. Seja de sangue ou não, não é a consanguinidade que vai fazer de uma pessoa um pai. A sua capacidade de amar, proteger, educar, se responsabilizar por uma vida, isso sim o torna pai. Na ausência do pai biológico, muitos outros ocupam o seu lugar. A figura paterna sendo representada por padrastos, avôs, tios, as próprias mães, amigos, enfim, pelos que com dedicação preenchem a vida de muitas crianças. Podemos entender que a paternidade é construída, diariamente, através de um aspecto do amor; e se for vivida de forma presente e de forma consciente, aí sim se conhecerá o sabor dessa riqueza. Uma riqueza de convivência, capaz de transcender em valores eternos as nossas existências.
E a criança, a sua filhinha? Deixe fluir. Deixe-a viver dentro da inocência da sua fase, que assim deve ser. Haverá muito tempo pela frente, onde a realidade se mostrará, gradativamente.
Ela crescerá, presenciará muita coisa durante o seu crescimento. Nessa evolução constante, o que seu pai passou não precisa, necessariamente, servir de espelho para ela. Cada um com seus momentos únicos e particulares. Mas certamente será uma receptora de princípios, virtudes e ensinamentos proporcionados pelo seu pai.
O pai se manteve na postura que achou ser digna naquele momento. Amorosamente envolveu-a num véu de proteção, assumindo o seu papel de responsabilidade perante aquele pequeno ser. Priorizando o respeito à sua idade e o momento infantil de sua vida. Transpondo sua tristeza, mantendo sua força, grandeza e comprometimento com a missão assumida, a sua responsabilidade pela vida de sua filhinha.
Responsabilidade tem a ver com responder, de como estamos respondendo às necessidades de nossos filhos.
Nos nossos atuais dias, estamos inseridos e vivendo dentro de uma rotina frenética, estressante e tão pressionada por um sistema social, que nos mantém presos e ansiosos o tempo todo. Fazemos tudo de forma rápida e rasa, gerando angústias a nós mesmos e, por consequência, se estendendo aos nossos filhos.
Não estamos mais conseguindo responder às nossas próprias necessidades como pessoas, como seres humanos que somos... Então, como conseguiremos responder, ouvir ou entender nossos filhos?
Certamente que eles serão afetados, afinal, toda leitura que fazem do mundo, as fazem a partir das referências que recebem de nós, os pais. Não sendo referências adequadas, distorções na interpretação da vida começam a ser absorvidas.
Comecemos por nós, os pais, a conseguirmos responder por nós mesmos, a fazermos o que há de melhor a ser feito, nos tornando pessoas melhores e mais felizes. Essa busca da felicidade pode ser iniciada dentro de uma simplicidade, nas pequenas coisas, nos pequenos atos, no viver dentro da verdade. A felicidade mora na simplicidade, apenas não estamos com os olhos devidamente abertos para percebê-la.
Disse um monge budista: “o maior presente que podemos entregar aos nossos filhos, é a nossa própria felicidade”. Profundamente filosófico e psicológico também. A criança precisa da alegria de viver de um pai e de uma mãe.
A felicidade é uma necessidade essencial nas nossas vidas, e quando temos filhos, o viver com felicidade se torna mais importante ainda. A criança que cresce num ambiente em que não há felicidade, pode crescer com o sentimento de que a vida não é boa, e que então não vale a pena viver.
Nada é totalmente irremediável, mas para que se reverta um sentimento desses, uma vez arraigado na criança, será muito custoso, muitas dores e sofrimentos já estarão envolvidos. Sábio então seria evitarmos isso. Encontrarmos o caminho para sermos felizes. Logicamente que existem situações extremas com múltiplos motivos, situações difíceis, duras; mesmo porque vivemos num mundo de muitas desigualdades. Mas, não percamos as esperanças e busquemos um meio de conquistarmos esse ideal, olhemos para dentro de nós mesmos, reflitamos... talvez essa conquista esteja mais próxima do que imaginamos, simplifiquemos... talvez esteja na simplicidade a resposta a que procuramos.
Leia a Crônica anterior a esta, caso ainda não tenha visto: Crônica #65 | Raiz do apego
Hoje, fico a imaginar como está aquela criança.
Aquelas pipocas e os doces que nunca chegaram na referida “festa de aniversário de outra criança” ... Apesar de toda dificuldade material que aparentavam, eram felizes em amor e carinho, os pais com a sua filhinha? Estavam eles, na simplicidade de suas vidas, inseridos no caminho a que levariam para o verdadeiro sentido de suas vidas?
A alegria, a felicidade, a harmonia, a simplicidade se encontram num estado de consciência. Um estado de espírito que não está fora, e sim dentro de cada um de nós; e presentes nos pequenos atos compartilhados entre pais e filhos, nos valiosos momentos do dia a dia.
Sem data específica marcada para o seu dia, pois todo dia é dia de vida, é dia de ser pai. Parabéns a todos os papais!!
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