A chama que não projeta sombra
Caminhávamos pelo clube num dia de clima agradável e tranquilo.
Na nossa frente, um casal com um filho pequeno também desfrutava daquela gostosa tarde. Notei que ele, o pequenino, seguia alguns passos à frente, tentando pisar na sombra projetada do seu pai. Uma brincadeira de “pega-pega”, o pai desviava das “pisadas” do seu filho e assim iam rindo, andando e saltitando. Num determinado momento ele se abriga debaixo de uma árvore e a sombra se desfaz. O menininho fica aguardando-o pacientemente fora da árvore, para continuarem a brincadeira. Sombra, luz, projeção... engraçado foi a equação que se formou no meu pensamento. Começamos a filosofar, eu e minha esposa.
Dois mundos se distinguem.
De um lado fugimos, ou propositadamente, deixamos de enfrentar uma realidade perante os problemas do nosso dia a dia. O que fazemos é uma interação com o mundo em que vivemos, ou bem dizendo, interagimos e convivemos dentro de uma sociedade e com todo o meio, com as máscaras que vestimos. Estamos sempre desempenhando um papel. Este é um lado, um aspecto da nossa personalidade, a nossa persona.
E de um outro lado do nosso eu interno, com todo seu lado obscuro; temos as sombras da personalidade.
Elas estão lá, escondidas e ocultas. Na verdade, temos medo que elas apareçam.
Perdeu a crônica de semana passada? Leia o texto na íntegra clicando aqui: Crônica #51 | Impaciência
A sombra existe porque tem uma fonte emissora de luz e uma matéria densa. Por curiosidade, se direcionarmos um facho de luz em frente a um palito de fósforo aceso, será projetado somente a sombra do palito e da mão que o segura e nunca a sombra da chama. Por que será? A física explica, mas nesse momento, não vem ao caso entrarmos nos detalhes. Se nós nos colocarmos no lugar do palito de fósforo, a imagem que dá sombra é a matéria densa do nosso corpo, porém, a luz que não apresentou sombra, o que será que representa em nós? A alma para alguns, para outros seria a consciência, a essência, o Eu Superior, Eu Maior, Centelha Divina, energia, a luz?
A luz não precisa se mostrar porque ela é perfeita, é simplesmente e tão completa, absoluta luz.
E continua o menino sua caminhada com seus pais. Segue pulando e pisoteando as sombras do pai, ora se projetando de forma gigante, ora pequena, quando o pai se agachava. Seu pai fazia gestos como um pássaro voando e o garotinho ria alto porque a sombra não saía do chão. Saltitava como um sapinho e ele o imitava em busca de uma sombra perfeita. Vejam, mesmo ele tentando pisar forte, a sombra não sentirá dor e nem sequer está ligada a quaisquer sentimentos. Dentro da sua imaginação, o menino divagava nas ilusões.
Antes assim fosse, totalmente como uma mera e falsa ilusão e sem quaisquer sentimentos ou emoções.
Porém, trazendo à realidade, esse nosso lado sombrio interno existe, pois ainda faz parte da nossa estrutura psíquica. Quem sabe um dia, numa esfera bem superior, deixemos de ter esse ponto obscuro; então já numa vivência sem mais tantos conflitos. Mas deixando esse sonho longínquo de lado, voltemos às sombras existentes. São quais, os aspectos sombrios da personalidade?
Estão lá, no lado obscuro de pensamentos, de fatos passados, traumas, segredos guardados a sete chaves e que nunca foram compartilhados com ninguém, tudo que rejeitamos, aquilo que condenamos veementemente, vergonha, traição, egoísmo, palavras mal ditas, atitudes inconsequentes; enfim muitos outros que cabem na vida de cada um, conforme dimensões tomadas dentro do seu referido espaço tempo. Pode ser algo tão forte que, além de não mostrar a ninguém, muitas vezes tenta-se esconder de si próprio.
Então, o que se faz com essas sombras? Geralmente é a não aceitação do que vemos e pensamos e lançamos tudo, na “gaveta da rejeição”. Passamos um cadeado, que muitas vezes arrependemo-nos depois, por ter jogado fora as chaves. O que deixamos dentro dela? Tudo o que rejeitamos e não paramos para entender e resolver.
Muitos dos nossos apegos podem se tornar uma sombra enorme. Sejam esses apegos a situações ou a coisas. Aquele apego a um emprego, por exemplo, que não pode e não consegue largar, mas que é a razão de todo sofrimento da pessoa. Ou mesmo um apego ao passado. Sabe aquela pessoa que conta repetidamente uma situação que foi de muita felicidade ou então que foi de muito sofrimento? Que fica remoendo e remoendo esse passado, triste ou não? Mesmo sabendo que não vai voltar nunca mais, fica apegada nele, parada no tempo e perdendo todo seu valioso presente, que é estar vivendo o agora. O que passou não volta mais e se voltasse não seria a mesma coisa; seriam outros momentos, outras percepções, outra realidade. Na tentativa de reviver, poderá se frustrar ainda mais e criar novas sombras. Prisioneiras do passado, das coisas, das situações, gerando conflitos e ancorados em energias estagnadas e densas. Emoções e sofrimentos desnecessários.
Todos nós sabemos, que o conhecimento vem conforme nosso amadurecimento. Por essa razão, é evitar jogar fora a chave do cadeado de cada gaveta de sombra que possuímos. Existe o momento e tempo certo para levar luz a cada aspecto sombrio da nossa personalidade.
A mentira é outro ponto que obscurece a nossa personalidade e que faz parte ainda, do ser humano. A mentira é algo que está escondida em uma das gavetas das sombras e existe um temor para se trazer diante da luz. Muitas vezes aplica-se a mentira para não perder a máscara social. Hoje, as redes sociais são repletas de falsas verdades, por exemplo. Usa-se da mentira para não decepcionar alguém, ou para maldizer alguém; motivos é que não faltam. Existem pessoas que mentem à toa, são tantas mentiras bobas que acabam se viciando. São aquelas pessoas que, para sustentarem uma mentira inventam outra e assim fatalmente acabam caindo na própria armadilha da contradição. Conhecem alguém assim? Pobre criatura que se perde na escuridão das redes das mentiras; muito triste a sua futura solidão, pois acabarão desacreditadas por todos. É bom lembrar que existe uma diferença grande entre mentir e omitir.
Quantas e quantas caixinhas guardamos ou escondemos...
Chegará um momento em que se fará necessário aplicar um basta. O momento de irmos em busca de uma vida mais leve, nos livrando gradativamente dessas temidas sombras. É o momento de buscar as chaves dos cadeados, abrir, reconhecer e trazê-las para fora, expô-las à luz. Ao pararmos de nos reprimir, tomarmos consciência de que fazem parte da nossa estrutura psíquica e de forma atenta e cautelosa deixarmos que elas se expressem.
Mantermos um diálogo, não reprimindo, mas sim acolhendo-as e entendendo-as. Elas existiram em incontáveis situações até o momento, mas a partir de agora terão um outro peso e uma outra medida. Não necessariamente deverão continuar a se manifestar como outrora. Podemos também, se assim nos identificarmos, fazermos um ritual escrevendo num papel tudo o que vem à mente sobre nossas sombras. Escrevermos os traumas, as dores, fazer um verdadeiro desabafo, sem qualquer filtro ou censura. Após esse autodesabafo verdadeiro, lermos por várias vezes, não reprimindo e entendendo. Depois dessa conversa conosco mesmo, queimarmos o papel. No ato da queima elevarmos nossa intenção de forma a dissolver as densidades, deixar o fogo consumir, destravando, soltando e trazendo leveza para nosso coração. Renascer nesse momento com novos propósitos, de não mais repetir os erros cometidos com a obscuridade.
Uma busca por profissionais da área é sempre muito bem recomendada. Precisamos aprender a nos entender.
Um reencontro com a pessoa que tanto sofreu, uma carta manuscrita de desculpas sinceras à moda antiga, uma ligação telefônica, flores com poucas ou uma única palavra, valerão a leveza que chegará na vida. Quando essa declaração sincera e verdadeira for transmitida, existirá uma grande chance de uma compreensão da outra parte. Essa intenção não é humilhante, pelo contrário, é um ato corajoso e como não é uma moeda de troca, é não se esperar que o outro lado lhe perdoe ou aja conforme imaginou.
Uma oportunidade de redenção. Sempre é tempo de uma ação.
Cada vez que destrancamos, cada vez que trazemos uma sombra para a luz da consciência, trazemos a oportunidade de sermos mais felizes, menos complexos, mais íntegros. Pacificamente podemos enfrentar os obstáculos e barreiras da vida e nos tornarmos mais compreensivos com as pessoas e com tudo o que nos rodeiam. É bem verdade que, algumas sombras já deixam de existir pelo nosso próprio amadurecimento. Quando percebemos a não mais relevância, muitas vezes elas já se foram pelo caminho.
Paramos de julgar as pessoas e a nós mesmos, e quando fazemos é com mais critério e sabedoria.
Estamos aqui para viver e não para julgar, no livre arbítrio cada um segue a estrada que escolheu.
O garotinho fazia a coisa certa. Pisava na sombra, ainda que fosse do seu do pai, sem se importar com o que essa sombra possuía na sua essência. Um dia esse menininho crescerá e saberá o verdadeiro sentido de uma sombra. Hoje estamos crescidos. Até quando seremos sombra e por que não sermos mais luz?
Já se perguntou, qual é a sua luz? Você tem luz? O que seria essa luz?
Nem só de sombras vivemos, todos temos muitas luzes a nos fazer brilhar.
E na nossa essência maior, ela reina absoluta, íntegra, plena!
O que temos dentro de nós que cabe no parâmetro do que é Verdadeiro, do que é Justo e do que é Bom?
Acharemos muitas coisas boas, muitas habilidades, muitas virtudes. Podemos até trazer alguns exemplos como o amor, verdade, compaixão, fé, amizade, esperança, responsabilidade, paciência, misericórdia, ética, respeito, humildade, alegria, gratidão e por aí afora.
É isso que pode ser a nossa luz. Se a nossa luz está ainda bem fraquinha em determinados aspectos, podemos treinar para fazê-la aumentar no volume. Por pequenina que seja a chama, ainda assim é uma chama, que poderá ser alimentada para que se torne uma verdadeira e potente luz.
Ao mesmo tempo que almejamos, temos também muito medo da nossa luz; isso às vezes de forma inconsciente. Talvez por algumas crenças ou paradigmas, afinal, a presença da luz traz consigo muitas responsabilidades. Quanto mais conscientes formos, mais seremos cobrados e mais responsabilidades teremos a encarar. Haverá a necessidade de se ter um ego mais ponderado, menos egoísta, menos eu e mais para todos; sair do egoísmo.
Muitos acham que ter conhecimento dá muito trabalho, porque vão ter que sair da sua agradável zona de conforto. Despertar a luz será trabalhoso demais. Imagina ter que ficar assumindo responsabilidades pelos seus atos? Melhor ficar na ignorância, culpar os outros, consequentemente, permanecer reféns de suas sombras. Sem falar que quando somos um pouco mais luz, nos tornamos diferentes. Já não nos afinizamos mais com determinados lugares, ambientes, determinadas pessoas e situações, músicas, leituras, filmes... nos tornamos mais seletivos e também meio estranhos ou esquisitos perante os outros. Flexibilidade, respeito e tolerância sempre, isso será rotina. Mas a leveza em que se torna a vida como um todo, compensa toda e qualquer exigência. Tudo, começa e passa a ser algo pontual.
Sentados num banco à sombra de uma enorme árvore, eu e minha esposa, continuamos a conversar sobre a brincadeira do pequeno menino. Lembrávamos da infância de nossas filhas, que muito brincaram por todo aquele mesmo grande e lindo clube. Discutíamos sobre sombras, sobre projeções e as ilusões que carregam juntas.
Num certo momento, o pequeno se cansa de tanto saltitar e o pai o pega no colo, num gostoso abraço. O eu pequeno e o eu grande se fundem gerando uma atmosfera de carinho e aconchego, atraindo então nesse momento, a mãe, que se junta ao abraço nos dando um espetáculo de alegria e felicidade. O garotinho era todo e só sorriso.
Uma esfera de luz, com certeza, foi irradiada em torno daquele encontro.
O nosso despertar acontece na medida em que formos sendo capazes de emitir nossas luzes, de constatarmos que nossa verdadeira essência é uma Centelha Divina. Nessa nossa dimensão somos luz e sombras, mas temos o poder e a opção de escolhermos deixar eclodir mais a nossa verdadeira e real essência. Assim vamos criando ao nosso redor, situações que se alinham com essa escolha.
Ao alinharmos o nosso eu inferior, onde estão nossas sombras, à nossa Centelha Divina, ao nosso Eu Superior ou Eu Maior, pode dar o nome que mais lhe agradar à sua Luz; toda nossa vida começa a se alinhar.
Uma vez que nos propomos estar vivendo nessa sintonia, nesse estado de fusão interior, então as coisas começam a acontecer de forma muito próxima ao que chamamos de mágica. Não, não é magia. Apenas começamos a recuperar o poder e lembrar de quem realmente somos.
A vida acontece numa sincronicidade incrível com a nossa consciência.
O paraíso ou o inferno está no estado de consciência de cada um.
Precisamos acreditar em nós, despertando para a existência de poder e determinação de escolha. De escolher estar do lado do Bem. Ser a diferença através de nossos exemplos, pois somente os exemplos poderão promover e criar uma modificação efetiva no nosso meio e nos que nos rodeiam.
Por pequeno e minúsculo palito de fósforo que sejamos, basta que decidamos nos deixar acender. O dolorido atrito que antecede a chegada da chama, será consumido tão logo essa chama se propague. A luz chega clareando e nos mostrando os pontinhos escuros a serem iluminados.
A sua claridade nos mostra a janela e a porta do antes escuro quarto, que ao se abrirem nos descortina um infinito céu azul, com seu sol irradiante e suas brancas nuvens. A terra, os rios, as montanhas; o verde, as árvores e o colorido infinito das flores perfumadas. Os animais, os pássaros a voar e a cantar... sim, um paraíso!
É a Vida que se abre e lhe convida: a reconhecer, a acreditar e a permanecer... nessa atraente e Divina Luz.
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Staff que trabalha para as Crônicas chegarem até você
• Cronista e filósofo neo
Otavio Yagima
• Coautora
Maria Hisae
• Narração
Patrícia Ayumi
• Artes
Thiago Martins
• Edição
Leonardo Fernandes
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