Estar no caos, sem ser o caos: eis o desafio.
O que você encontrará nesta crônica:
"Você acha que a paz nasce de uma harmonia profunda? Se assim for, pode ela coexistir com o caos? Como se processa esse paradoxo em nossa mente? A busca por ela é sofrida, pois vivemos em um mundo tumultuado que se desdobra, lançando sombras sobre nossas esperanças. Mais do que a ausência de conflito, ela é um estado de harmonia interior, onde o mundo externo não penetra de forma destrutiva. Tal qual a calma que se esconde no centro de uma tempestade, talvez a verdadeira paz não seja a fuga do caos, mas a aceitação de sua presença - estar diante do caos, mas não ser o caos. Você concorda com isso?"
I. A gota de veneno.
Era madrugada, e um forte silêncio ainda envolvia a estrada, fazendo destacar, dentro do meu carro, as notas suaves de uma sinfonia clássica. Eu sentia o tempo suspenso, e o mundo, com seus gritos e urgências, parecia distante, proporcionando uma sensação tranquila de paz. Então, uma falha no som, ao passar por uma serra, me fez trocar de estação de rádio. Aquele ruído na frequência foi o prenúncio de uma brusca mudança. Uma frequência mais forte entrou, trazendo a notícia de que os conflitos no Oriente Médio haviam se intensificado. Em outras situações, certamente teria filtrado a entrada da informação, não me deixando envolver tanto, pois muitas notícias chegam até nós deturpadas em seu verdadeiro teor. Porém, naquele instante, fui atravessado por uma inquietação inesperada. A paz que eu sentia desfez-se rapidamente. Era uma gota de veneno na minha mente, já no início de um novo dia.
Minha mente captou, em questão de segundos, as vibrações extremas de energia mental. Inevitavelmente, fui criando imagens à medida que ouvia o locutor descrever as mortes, principalmente de crianças e mulheres, no cenário de guerra. Fui tomado por um turbilhão interno. Iniciei um exercício de respiração consciente, sabendo que tudo aquilo acontecia por uma razão, mesmo que desconhecida naquele momento, e estava fora do meu controle. À medida que minhas vibrações se estabilizavam, um alerta silencioso disparou no fundo da minha mente, deixando um impacto que, mesmo sem perceber, eu carregaria de forma sutil pelo resto do dia.
Antes de chegar ao meu destino, parei para tomar um café. Novamente, minha mente disparou de forma perturbadora quando a televisão ali mostrava as imagens implacáveis do conflito. Casas destruídas, vidas arruinadas e o sofrimento exposto com uma crueza que a tela não conseguia suavizar. A mídia vomitava suas verdades unilaterais, seguindo a costumeira narrativa de medo e terror, diante de razões que se impunham sem contestação. Aquele pensamento, que antes estava apenas na minha imaginação, tomou forma visível. E então, mais uma gota de veneno invadiu a minha mente.
E a paz, onde se esconde? Parece existir apenas como um contraponto, em uma distante miragem. Paz e guerra, sempre em lados opostos, como se fossem necessárias uma à outra. Uma provoca, a outra responde. Uma propõe, a outra aceita. E, todos nós, no meio disso, oscilamos entre o achismo e o fanatismo, muitas vezes acreditando cegamente, e em outras nos perdendo em meio às trevas apresentadas.
Minha mente, inquieta e de forma quase automática, viaja em busca das razões para a existência dos confrontos. No palco mundial, os conflitos já são velhos conhecidos. Mas, e as nossas guerras internas? São tão graves e devastadoras quanto qualquer ataque ou efeito de guerras biológicas ou psicológicas. Armas municiadas de forma invisível, com projéteis de ódio, ego e inveja, sempre engatilhados e prontos para disparar. O que difere é o alvo, mas o desfecho é o mesmo: vidas que, mesmo em pé, já não estão mais vivas; vidas ceifadas em vida, com suas profundas feridas.
Il. O cálice da angústia e medo.
Aquela manhã estava se comportando de forma atípica. Minha vibração de positividade tinha sido afetada. No meu íntimo, desejava que o dia transcorresse sem mais notícias de conflitos. Entretanto, ao abrir o celular para ler as mensagens, as manchetes não trouxeram trégua. Não bastassem os conflitos, agora o mundo tremia sob os abalos de um terremoto na Ásia. Mais terror nas narrativas, as vítimas se acumulavam e os números divergiam. Era a terceira dose de veneno emocional.
De gota a gota, o cálice do medo e da insegurança se enchia com a sensação de angústia e desilusão. Beber dele seria submeter-me à escravidão da mente coletiva; seria como se o mundo me oferecesse um cálice, onde essa mente coletiva já tivesse decidido por mim: mergulhar no caos ou silenciar para sempre, levando à morte em vida pela força da indecisão. Era preciso agir rápido. Não beberia daquele medo, não seguiria a maré.
Pensei que o bombardeio de noticiários parasse por aí. Infelizmente, naquele dia, continuou. O veneno voltava a aparecer de forma impositiva; a quarta dose de veneno veio ao encontrar-me com um colega de trabalho, que trouxe a notícia sobre uma amiga em comum. Havia ela caído em depressão profunda, onde o desânimo, as dívidas financeiras e o processo de divórcio, com duas crianças ainda pequenas, tornaram o seu fardo grande e pesado demais, levando-a ao limite de tentar tirar a própria vida.
Parecia que o dia terminaria daquele jeito. Eu precisava de antídotos. No caminho de volta, passei ao lado do velho e costumeiro ponto de encontro de amigos. Um lugar agradável que, com o tempo, se tornou um confessionário de ilusões e sonhos, onde, em pequenas doses de cerveja, os conflitos, ilusoriamente, pareciam se diluir. Avisto Beto, sozinho, com o olhar perdido. Buzinei, e ele acenou, convidando-me para uma companhia. Depois de um forte abraço, brinquei, perguntando o que fazia ali em plena quarta-feira, e rimos juntos, como se a resposta fosse evidente e, ao mesmo tempo, inútil.
“Vim em busca de paz, porque em casa está difícil. É um problema atrás do outro. Depois que me aposentei, virei um office boy de luxo para a família. Aqui, encontro essa tranquilidade, pelo menos por um tempinho.” Essas palavras saíram da boca de Beto como um desabafo, enquanto ele buscava ali um breve refúgio, uma pausa para respirar longe das pressões que insistiam em sua vida. A mesa posicionada em um deque elevado oferecia uma vista bonita de uma praça bem cuidada. Talvez fossem aqueles os únicos momentos de tranquilidade que ele teria naquele dia, entre os goles e a conversa jogada fora.
Na mesa ao lado, um senhor reclamava com certo desespero: “Não sei como vamos viver daqui para frente. Ainda bem que essas guerras estão longe daqui, mas o petróleo vai subir, vai disparar a inflação... Tantas barbaridades acontecendo que parece sinal do fim do mundo…” Aquilo soava para mim como mais uma gota de veneno emocional, uma nova camada de medo sendo servida. Era escolher entre a razão e a emoção, pois o convite sutil para mergulhar naquela onda de pessimismo estava feito. Não podia me deixar entrar naquela energia de sofrimento.
Quantas e quantas gotas de veneno vão infiltrando nossa mente ao longo de nossos dias? Na maioria das vezes, estamos tão atarefados que nem percebemos essa absorção nociva
que contamina não apenas nossa mente, mas também nosso coração. Essa falta de atenção pode nos levar a adoecer, e deixar que o peso do mundo se acumule em nossas almas.
Estar alerta no momento presente é um antídoto poderoso. Essa consciência nos permite discernir melhor o que devemos acolher e o que devemos descartar, antes que a dose de veneno entre e faça seu estrago. Cada pensamento, cada notícia, cada conversa pode ser uma gota de veneno ou um sopro de vida. A escolha é nossa. Fazer pequenas pausas e respirar fundo: essa simples prática pode ser um primeiro passo para resgatar nossa saúde emocional e viver com mais leveza.
lll. Autoridade sobre as tempestades.
Somos atingidos e passamos por muitas trombas de tempestade que nos desestabilizam, desequilibrando nossas emoções. Estar sob uma tempestade ou simplesmente se deixar entrar em uma, sem, no entanto, ter essa tempestade dentro de nós, esse seria o grande ponto a ser alcançado. Não ter a tempestade dentro de nós nos dá autoridade sobre ela. Essa é uma conquista consciente, um exercício que requer organização e disciplina da nossa mente. É como ter soberania sobre si mesmo, pois é na tempestade que a paz deve vir à tona; é no dia ruim, no dia do desespero. No dia bom, ela naturalmente se manifesta.
Quantas vezes nos pegamos na busca incessante pela paz? Não aquela relacionada à guerra, mas sim a paz que silencia nosso turbilhão interno, a tão falada paz interior. Quando ela nos escapa, procuramos fora, em algo ou alguém, esperando que nos completem, como se a paz pudesse ser entregue de bandeja, já pronta.
Essa paz que se esvazia é fruto de uma ilusão, pois acreditamos que está externa a nós. A paz vai além de um simples cessar-fogo; transcende intenções, carrega histórias e é complexa. É um estado que não se impõe, mas se sente, muitas vezes sem qualquer explicação. Se olharmos mais atentamente, perceberemos que quem propõe tanto a guerra quanto a paz é nossa própria mente, movida por desejos de controle.
A paz é um presente precioso e silencioso, sempre próximo, esperando ser descoberto. Muitas vezes, porém, elevamos esse presente a um campo de batalha, despertando nossas feras internas. Ainda assim, nada nos impede de trabalhar e, com o tempo, reconhecer que a paz verdadeira só pode brotar de dento para fora.
Beto, com um sorriso cansado diante dos assuntos de guerra que insistiam em nos alcançar, também se via impactado pelo veneno emocional. Então, questionei:
“Meu amigo, se amanhã acabarem todas as guerras que ocorrem no mundo, realmente nos sentiremos em paz? Qual seria o tamanho da paz que precisamos? E mais: estaríamos em paz com nossas consciências? Quantos arrependimentos já acumulamos, quantos deslizes deixamos pelo caminho? Será que, ao finalmente conquistarmos essa liberdade tão desejada, estaríamos livres do peso da reponsabilidade?”
Somos uma composição própria de guerra e paz todos os dias, e nossas escolhas definem o que vai prevalecer: se a guerra ou a paz.
E, em meio à troca de nossos pensamentos, Beto recebe uma ligação de sua esposa.
Ele diz calmamente:
“A paz se foi...”
Todos rimos, um riso solto e espontâneo. Naquele instante, aquelas palavras pareciam não carregar nenhum peso. Por trás do riso, o pensamento depressivo começou a se desintegrar, e a paz que parecia perdida se recolheu, aninhando-se junto à mesma voz que falava e demonstrava o amor que ele sentia por sua esposa.
A sombra da angústia cedeu espaço a uma serenidade oculta, que ressurgiu silenciosa quando o amor falou mais alto. Era como se, ao mencionar sua esposa, a paz interior que ele julgava perdida se revelasse novamente. O que parecia uma contradição se dissolveu, revelando que, mesmo nas palavras ditas como brincadeira, o amor sempre traz consigo uma enorme porção de harmonia e paz.
Quando as tempestades do dia enfim cederam à serenidade da noite, perguntei-me, finalmente em silêncio: estou em paz?
E você, está em paz?
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.